Em um lugar como um quarto onde em certos passos
da noite o silêncio pode confundir-se com o vazio intrínseco dos sonhos, um relógio de parede que estrala a cada
segundo era uma terrível ideia, pensava Emily. À parte deste pensamento, os
sentimentos e conclusões sobre relógios eram outrora mais remendados e
dissonantes.
No meio desta noite de quarta-feira, ela foi
novamente vítima do silêncio da noite – ou dos gritos dos segundos – e acordou.
Nas primeiras vezes em que isso acontecia, ela tão somente intentava
revolver-se ao vazio, ilógico e momentâneo mundo dos seus sonhos. Quando isso
começou a tornar-se mais frequente, pensou um tanto e notou que, a medida que a
cidade dormia, o relógio acordava e, neste dia, amanheceu sentada de pernas
cruzadas, cabeça levantada e olhar vidrado no vidro do relógio. Nos dias
consecutivos, notou a atenção que todos davam aos relógios e concluiu que as
pessoas perderem às horas se devia à existência do mesmo.
Porém, nesta noite de quarta-feira, nada havia
de interessante ou novo para se pensar. Então, Emily virou para a parede e
permaneceu deitada. Enquanto a embriaguez dos sonhos caminhava para o passado,
a imaginação lúcida tomou lugar. Primeiramente, pensou em algo que andasse
naquela parede e brincou como se a mão fosse um boneco pentápode dotado de
poderes antigravitacionais. Posteriormente, pensou nas lagartixas que andam nas
paredes, mas não voam. Desgostou da sombra do próprio pensamento e encerrou a
brincadeira como se fechasse as cortinas no fulgurar do sol.
Passado alguns segundos, o cérebro inquieto a
fez perguntar-se “Se algo pode andar na parede, algo pode entrar na parede?”. Na
luz desta ideia, levantou-se e sentou frente à parede até o amanhecer.
Sua mãe a pegou durante vários dias olhando
severamente para a parede como se existisse um mundo lá dentro. Pensou,
primeiramente, que tal comportamento devia-se à mudança de cor da parede que se
sucedeu há alguns dias. À medida que a ideia do mundo da parede aumentava, a
imaginação de Emily conjeturava as possibilidades do que encontraria se nela
pudesse entrar. O que veria? Como se sentiria? O que encontraria lá? Será que
outras crianças ou adultos já fizeram esta viagem ou a fazem?
Os dias consecutivos, nos quais manteve-se
interna, foram cortados de progresso devido a sua percepção sobre a cor da
parede. Não se sentia atraída pela cor atual e resolveu fazer algo para que
isso não acontecesse. Andou até a semana passada e tentou convencer seus pais a
não fazerem a tal pintura – sem sucesso. Ao total, ela percorreu este caminho
por três vezes e a única coisa que obteve foi a perda de três semanas. Desta
forma, assim como alguém se acostuma a um novo corte de cabelo, ela se
acostumou com a cor e aprendeu a apreciá-la apenas porque ela em si ainda era
parede. Neste dia, ela a lambeu. Não sentiu qualquer gosto e pensou que, da
mesma maneira que uma foto retrata um lugar mesmo não sendo o próprio lugar, o
gosto exterior da parede só poderia ter, no máximo, o sabor do exterior. Todo o
desafio e espetáculo do mundo intra-parede guardava-se dentro dela da mesma
forma que uma casca de ovo não apresenta semelhança à clara e tampouco à gema.
Acalmou-se um pouco nos próximos dias e agiu
como uma menina comum. Confundiu-se muito com os últimos pensamentos ao ponto
de querer abandoná-los. Por poucos dias deteve-se aos afazeres escolares e as
necessidades básicas do ser humano até que um dia deparou com a ideia da
religião e de existir um deus unipresente. Indagou-se sobre como um ser poderia
estar em todos os lugares. Sabia ela que, há muito tempo, os homens tinham
deuses sobre várias coisas – sol, chuva, inteligência, aves, etc. – e
descompreendia como tantos deuses deram lugar a um. Todas as pessoas que Emily
conhecia acreditavam em um deus apenas. Mesmo os judeus, os protestantes e os
ortodoxos tinham esta coisa em comum.
Em meio a um de seus casos de insônia devido ao
relógio gritante, teve uma brilhante dedução sobre as religiões – Paredes. Em
vista que as pessoas costumam ter as paredes em volta para fazerem suas viagens
internas religiosas, isto deveria ser a explicação. O sol não respondia, a
chuva tampouco e aves eram mais suculentas que passíveis de divinação. Desta forma, quando o primeiro homem entrou
na parede, provavelmente divertiu-se com os seres extra-paredes que viam-se tão
inseguros com tudo e, entre um ser invisível que responde e entidades visíveis
que apenas existem, a primeira era um deus e a segundo era, de alguma forma,
apenas algo comum. Além disso, como o parede ligava-se ao chão e este a outras
paredes, um ser dentro da parede seria unipresente. Isto é, até onde o chão
pudesse conectar-se. Viu uma enorme impossibilidade física nisso tudo e, neste
momento, ficou um tanto decepcionada. Pensou que alguém que estivesse nas
paredes da Europa, também poderia estar na Ásia e na África, porém não poderia
ir para Oceania ou para as Américas e vice-versa. O que a fez pensar se era
possível sair da parede depois. E mais: Será que existiria morte na parede?
Dorothy com o tornado, Alice com a toca, Emily
com a parede. ‘Por que não?’, pensava ela. Talvez estes mundos não fossem reais
como tampouco a parede, porém, e se fossem?
Desta maneira, Emily começava a notar que já se alongava em demasia no universo das conjeturas. Não queria ser como os adultos que vivem das conjeturas e morrem sem as ações. Nesta noite, respirava em delírio frente à parede. Desenharia uma porta? Não... Certamente que não. Portas são objetos do lado de cá. Devem ser inadequados por lá. Quase uma ofensa, pensava.
Desta maneira, Emily começava a notar que já se alongava em demasia no universo das conjeturas. Não queria ser como os adultos que vivem das conjeturas e morrem sem as ações. Nesta noite, respirava em delírio frente à parede. Desenharia uma porta? Não... Certamente que não. Portas são objetos do lado de cá. Devem ser inadequados por lá. Quase uma ofensa, pensava.
Sentada como habitualmente, largou a imaginação
e posicionou-se. Inalou, segurou a respiração e no descargo de excitação, no
desespero da endorfina, na epidemia de vasoconstrições, largou a respiração sem
qualquer ato. Todavia, a ideia de desistir estava longe da realização. E, no
imediato momento que pensou na desistência, investiu contra a parede. O corpo
de Emily sofreu as consequências da física e os prelúdios da dor, porém
resistiu ao próximo compasso. Encheu a boca de vogais e as engoliu. Fez do seu
corpo jogado ao chão ereto novamente. Tão somente com uma escoriação leve na
testa. E a tontura? Fruto da viagem, pensava ela. Supunha que quase alconçou o
que desejava.
Nesta última tentativa, manteve-se leve.
Esqueceu o resto da existência. Fechou toda a consciência. E, em um definitivo
impulso, desta vez, Emily entrou na parede.
Cesar Domity
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