Seguramente
não sou eu 
Ou antes: não é o ser que eu sou, sem finalidade e sem história. 
É antes uma vontade indizível de te falar docemente 
De te lembrar tanta aventura vivida, tanto meandro de ternura 
Neste momento de solidão e desmesurado perigo em que me encontro. 
Talvez seja o menino que um dia escreveu um soneto para o dia de teus anos 
E te confessava um terrível pudor de amar, e que chorava às escondidas 
Porque via em muitos dúvidas sobre uma inteligência que ele estimava genial. 
Seguramente não é a minha forma. 
A forma que uma tarde, na montanha, entrevi, e que me fez tão tristemente temer
minha própria poesia. 
É apenas um prenúncio do mistério 
Um suspiro da morte íntima, ainda não desencantada... 
Vim para ser lembrado 
Para ser tocado de emoção, para chorar 
Vim para ouvir o mar contigo 
Como no tempo em que o sonho da mulher nos alucinava, e nós 
Encontrávamos força para sorrir à luz fantástica da manhã. 
Nossos olhos enegreciam lentamente de dor 
Nossos corpos duros e insensíveis 
Caminhavam léguas - e éramos o mesmo afeto 
Para aquele que, entre nós, ferido de beleza 
Aquele de rosto de pedra 
De mãos assassinas e corpo hermético de mártir 
Nos criava e nos destruía à sombra convulsa do mar. 
Pouco importa que tenha passado, e agora 
Eu te possa ver subindo e descendo os frios vales 
Ou nunca mais irei, eu 
Que muita vez neles me perdi para afrontar o medo da treva... 
Trazes ao teu braço a companheira dolorosa 
A quem te deste como quem se dá ao abismo, e para quem cantas o teu desespero
Como um grande pássaro sem ar. 
Tão bem te conheço, meu irmão; no entanto 
Quem és, amigo, tu que inventaste a angústia 
E abrigaste em ti todo o patético? 
Não sei o que tenho de te falar assim: sei 
Que te amo de uma poderosa ternura que nada pede nem dá 
Imediata e silenciosa; sei que poderias morrer 
E eu nada diria de grave; decerto 
Foi a primavera temporã que desceu sobre o meu quarto de mendigo 
Com seu azul de outono, seu cheiro de rosas e de velhos livros... 
Pensar-te agora na velha estrada me dá tanta saudade de mim mesmo 
Me renova tanta coisa, me traz à lembrança tanto instante vivido: 
Tudo isso que vais hoje revelar à tua amiga, e que nós descobrimos numa
incomparável aventura 
Que é como se me voltasse aos olhos a inocência com que um dia dormi nos braços
de uma mulher que queria me matar. 
Evidentemente (e eu tenho pudor de dizê-lo) 
Quero um bem enorme a vocês dois, acho vocês formidáveis 
Fosse tudo para dar em desastre no fim, o que não vejo possível 
(Vá lá por conta da necessária gentileza...) 
No entanto, delicadamente, me desprenderei da vossa companhia, deixar-me-ei
ficar para trás, para trás... 
Existo também; de algum lugar 
Uma mulher me vê viver; de noite, às vezes 
Escuto vozes ermas 
Que me chamam para o silêncio. 
Sofro 
O horror dos espaços 
O pânico do infinito 
O tédio das beatitudes. 
Sinto 
Refazerem-se em mim mãos que decepei de meus braços 
Que viveram sexos nauseabundos, seios em putrefação. 
Ah, meu irmão, muito sofro! de algum lugar, na sombra 
Uma mulher me vê viver... - perdi o meio da vida 
E o equilíbrio da luz; sou como um pântano ao luar. 
Falarei baixo 
Para não perturbar tua amiga adormecida 
Serei delicado. Sou muito delicado. Morro de delicadeza. 
Tudo me merece um olhar. Trago 
Nos dedos um constante afago para afagar; na boca 
Um constante beijo para beijar; meus olhos 
Acarinham sem ver; minha barba é delicada na pele das mulheres. 
Mato com delicadeza. Faço chorar delicadamente 
E me deleito. Inventei o carinho dos pés; minha palma 
Áspera de menino de ilha pousa com delicadeza sobre um corpo de adúltera. 
Na verdade, sou um homem de muitas mulheres, e com todas delicado e atento 
Se me entediam, abandono-as delicadamente, desprendendo-me delas com uma doçura
de água 
Se as quero, sou delicadíssimo; tudo em mim 
Desprende esse fluido que as envolve de maneira irremissível 
Sou um meigo energúmeno. Até hoje só bati numa mulher 
Mas com singular delicadeza. Não sou bom 
Nem mau: sou delicado. Preciso ser delicado 
Porque dentro de mim mora um ser feroz e fratricida 
Como um lobo. Se não fosse delicado 
Já não seria mais. Ninguém me injuria 
Porque sou delicado; também não conheço o dom da injúria. 
Meu comércio com os homens é leal e delicado; prezo ao absurdo 
A liberdade alheia; não existe 
Ser mais delicado que eu; sou um místico da delicadeza 
Sou um mártir da delicadeza; sou 
Um monstro de delicadeza. 
Seguramente não sou eu: 
É a tarde, talvez, assim parada 
Me impedindo de pensar. Ah, meu amigo 
Quisera poder dizer-te tudo; no entanto 
Preciso desprender-me de toda lembrança; de algum lugar 
Uma mulher me vê viver, que me chama; devo 
Segui-Ia, porque tal é o meu destino. Seguirei 
Todas as mulheres em meu caminho, de tal forma 
Que ela seja, em sua rota, uma dispersão de pegadas 
Para o alto, e não me reste de tudo, ao fim 
Senão o sentimento desta missão e o consolo de saber 
Que fui amante, e que entre a mulher e eu alguma coisa existe 
Maior que o amor e a carne, um secreto acordo, uma promessa 
De socorro, de compreensão e de fidelidade para a vida. 
                                              Vinícius
de Moraes
(Homenageado)