domingo, 23 de fevereiro de 2014

Renata

Parecia festa de família e muitas pessoas estavam por ali. De algum modo, eu não as reconhecia. Elas tinham uma aparência de parentes distantes embora eu soubesse que se tratasse da minha família biológica e, da mesma forma que a aparência delas tinha esta irrealidade, suas vozes eram abafadas; eram como susurros gritados e indecifráveis.
         Similarmente às pessoas, o lugar tinha uma tonalidade de habitação cognoscível – muito similar a uma fazenda, confesso. Na parte da frente, havia um gramado com árvores que enfeitavam a visão e, justamente por entre elas, veio aquela menina cheia de explosões eufóricas em pulos, com um sorriso inimaginavelmente único – uma vez que apresentava uma melancolia muito bem disfarçada mas radiando certa sensação de alacridade que tomava proporções virais e nos infectava profundamente – e com cabelos ativamente esvoaçantes.
         Passou por mim e fez um cumprimento intenso e serelepe sem me tocar. Parecia ter alguma coisa ainda a fazer antes de dar-me atenção. Neste momento, comecei a me perguntar por que haveria ela de fazer isso. Talvez por ela ser mais nítida que todos os presentes ou talvez por, em vista desta característica, ela me parecer ainda mais desconhecida que os demais.
         A casa por dentro era grande e tinha vários quartos, alguns corredores e duas salas espaçosas. Em uma delas, onde havia um sofá em formato estranho que era quase como um U e o qual ficava justamente virado para a grande porta de vidro que era a entrada frontal da casa, estava a Hannah quase deitada. Olhei para ela de uma maneira estranha. Parecia um fato disperso ela estar ali. Ela, contrapondo-se à minha expressão, olhou-me ternamente e lançou um beijo silencioso o qual vinha acompanhado de uma sexualidade que me deixou, naquele instante, estranhado. Os cabelos estavam esparsos e no gesto lançado mexeram-se com tamanha suavidade, delicadeza e harmonia que meus sentidos ficaram confusos. Tentei não demonstrar tal confusão, pisquei tentando estar ao nível da sexualidade demonstrada e virei-me para seguir por um corredor. ‘Venha aqui’, disse ela com aquele sotaque de Belém ainda não extinguido e de uma maneira suave a qual deixou a possibilidade de recusa como opção não viável.
         Sentei ao lado. Ela estava virada para à porta e eu para dentro da casa. Senti-me intimamente perturbado pelo aspecto da realidade. Ela, similar a menina que chegou, tinha nitidez. Beijamo-nos brevemente. O beijo dela não mudara muito desde o primeiro que nos demos. Devido à língua miúda e fina somado a, quiçá, um impedimento estético a qual ela mesma se impunha, o beijo dela era em grande parte labial. Ao menos, os lábios dela eram puramente um deleite imensurável. Eram simples, de uma textura que, de tão magnífica, só poderia ser um acidente da natureza. Carnudos mas macios, úmidos na medida certa e, o que já se torna óbvio, extremamente envolventes.
         Levantei-me enquanto arrastava minha mão sutilmente pelas costas descobertas dela. Usava vestido de verão feito de algodão e de cor coral claro ou salmão – não saberia identificar – e cuja abertura atrás permitiu o meu ato pseudolibidinoso.
         Fui para um dos quartos no fundo de um dos corredores e encontrei novamente a menina. Havia ouvido alguém falar o nome dela. Renata. Prestei atenção para não falar errado e, novamente, perguntei-me qual a importância daquilo. ‘Oi’, disse ela. E respondi com um ‘Olá’ para não ser redundante. Ela deu-me um abraço e disse que estava com saudade. Neste instante, meu sentimento de estranheza tornou-se uma confusão completa. Havia uma realidade que não parecia com a minha habitual. Estávamos a dois passos da porta em direção ao interior do quarto e ela permaneceu abraçada em meu dorso enquanto inclinava a parte superior do próprio corpo para trás em ordem de ter uma visão mais ampla do meu rosto. Antes que eu pudesse formular algum pensamento, ela me beijou com desejo. Vi aquela boca com batom vermelho se aproximar e, mesmo antes de me tocarem, os lábios já estavam separados e a língua já estava inquieta lá dentro. Agarrei-a firmemente pela cintura para demonstrar reciprocidade de desejo. Aquele beijo era diferente do último que recebi. Este, ao invés de vir a me envolver, sugava-me. A língua era consideravelmente mais carnosa e tinha uma suculência espantosa. Era maleável, de leve aspereza e absurdamente macia.
         Quando ela se afastou, fiquei muito intrigado com quem poderia ser esta Renata. ‘Estava com saudade’, disse ela novamente. Não pude sequer dar uma palavra sobre isso. Mantive-me com um sorriso sutil de satisfação e a observei atentamente. Como eu poderia esquecer quem ela era? Aquele cabelo ruivo, quase crespo, aquele olhar imensamente indecente e lascivo, aquelas sardas discretas pelo rosto, aquela beleza esquisita e, por isso, deliciosa... Como poderia eu não saber quem ela é? O que teria acontecido com minha memória? Por que eu me sentia tão extasiado apenas pela presença dela?
         Neste momento, lembrei-me da Hannah. Ela sempre fora uma pessoa a qual não transmitia dignidade e, em vista disso, sempre tive que vigiá-la de uma maneira cuja minha própria ídole desgostava. Resolvi ir vê-la. ‘Dê-me um minuto’, disse à Renata.
Ao chegar lá, ao invés de ter minhas suspeitas em fatos, encontrei-a dormindo no sofá. No mesmo sofá. Nesta instância, lembrei-me que não tínhamos uma relação. Não tínhamos qualquer pacto. Ela era alguém e eu era outro alguém. Desisti dela como se desiste de uma dor passada que perturba-nos frequentemente. Voltei impetuoso para o quarto onde havia deixado a Renata. Entre meus passos firmes, tive a veemente impressão de ser semelhante a ela. Como se fôssemos seres compatíveis em vários estados. Então, recordei-me de minhas precedentes experiências. Sempre tive esta sensação com pessoas as quais estava  intensamente envolvido. Como se tivéssemos algo plenamente harmônico e sintonizado tanto em nível sexual, mental, organizacional como em qualquer outro nível ou detalhe menos importante que se possa pensar.
         A porta estava fechada e a abri com uma vagarosidade contrária do meu caminhar no corredor. Minha libido era gritante e, por algum motivo, sabia que ela estaria em uma situação similar. Quando a avistei em cima da cama, não só houve correspondência do meu raciocínio, como tive espasmos por ver tal cena. Ela estava nua e estendida em cima da cama de solteiro que havia ali. A pele branca reluzia levemente devido à claridade que entrava pela janela e os cabelos de cobre cobriam um pouco os seios. Ainda assim, podia-se vê-los discretamente entre as falhas de fios e mechas. Ela brincava de enrolar a ponta de uma parte dos cabelos nas proximidades do seio direito deixando aparecer o mamilo demasiadamente rosado.
         Em um impulso, tranquei a porte e dirigi-me para cama. Ela abriu os braços e pernas para me receber, ainda vestido, e, com precisão e rapidez, atirei-me sedento e me posicionei em cima dela fazendo minhas mãos agarrarem aquela cintura delineada e beijando-a da mesma forma que ela me beijava – sugando-a.
         Neste momento, tive uma sensação de desrealização. Eu não estava apenas em harmonia, mas comecei a coexistir com ela. Meus olhos estavam fechados. Dos lábios inebriantes, eu já estava partindo para garganta e todo o hálito dela já era minha respiração.  Aquela pele desmanchava-se perante mim e qualquer conclusão que eu tentasse formular falhava no êxtase ao qual eu estava tomado. No fim, estava eu em um lugar diferente. Sozinho, na minha cama e com um gosto de whisky da noite passada perambulando minha respiração.

Cesar Domity

As Sensações dos Transeuntes

Um mulato de qualquer nome passeava pelo parque no princípio do entardecer. Amaciava-se no caminhar enquanto absorvia sua essência de animal mesclado; pardo até na alma. Revigora-se entre os desafios dos propostos paradigmas sociais. Porém, falava pouco.
As senhoras que ali passavam e alimentavam as pombas eram, em aspecto bem restrito, mais interessantes que os individuos que com ele se propunham a conversar. Enquanto as senhoras com as roupas em cruzamento do século atual e do século passado alimentavam as gordas pombas com um ar de ambietização da existência, os indivíduos falantes só queriam comunicar seus cotidianos frustrados.
         O caminho do parque possuía uma abóboda de galhos e folhas verdes que traziam a imagem do quente e fortemente colorido verão. Apesar desta estação não ter muitas variações, as cores do verão são normalmente intensas. Assim se baseava para saber em qual estação encontrava-se. Parecia um sistema lógico. O verão e o inverno são oligocromáticos, porém, intensos nestas cores. O primeiro apresenta cores mais vivas enquanto o segundo destaca as frias. A primavera e o outono traziam uma relação diferente tal que a primeira estação era uma miscelânia de nascentes cores em todos os cantos; o outono descascava as mesmas e as punha em sépia e preto. O mulato ainda concluía uma analogia entre o pensamento e as estação: A primavera propunha insights e a reverberação da criatividade ao passo que o outono afundava os homens na reflexão.
         O mulato havia sido doutrinado em uma sociedade judaico-cristã que prega a prática de valores sociais antes da eficiência da aplicação destes valores. Assim como muitos, ele pouco sabia do reflexo dos valores que aplicava. Nem os negativos, nem os positivos e, por tanto, como um cidadão de uma sociedade pseudo-laica, tratava de fazê-los antes de entendê-los.
         Nesta admiração pela existência, uma senhora, com vestimentas mais antiquadas que o comum das senhoras e de rugas expressivas que pareciam contar uma vida em uma linguagem taciturna e contextual com a criatura proprietária, sentou no mesmo banco que o mulato. Tinha em mão um saco de papel marrom e atirava alguns poucos pedaços de pão para as pombas gordas do parque.
         O mulato a parcebeu de sobressalto e ela sorriu como uma avó que pega o neto a fazer traversuras e consente em manter aquelas ações em desconhecimento para os pais da criança. Ele, inconscientemente, sentiu-se confortado e relaxou o corpo como se a combinação entre ele o banco fosse um estado quântico fundamental. E neste mesmo princípio, preferia que ninguém o observasse, que ninguém interferisse, que ninguém cedesse o mínimo de energia que fosse para excitá-lo. Eis que, ao longo de algum tempo, o conjunto senhora - que incluia as rugas, as roupas e uns 70 anos de idade - manifestou-se.
         - Sabes, moço... Hoje faz 5 anos que o meu marido faleceu.
         Ele supôs que a senhora fosse como uma boa velhinha solitária, criadora de inúmeros gatos, que divide os períodos de lazer entre pintar alguns quadros com péssima arte morta, dar pães às pombas do parque e que precisava de alguém de vez em quando para sentir-se viva.
         - Ele sempre me pedia que eu fizesse sexo oral nele. Eu nunca fiz sexo oral na minha vida. Depois que ele morreu, eu comecei a pensar o quão tola eu fui por não ter tentado algo assim. Depois que ele morreu, eu comecei a pensar como seria, sabe? Quero dizer... Como seria fazer sexo oral em alguém... Eu queria lhe pedir...
         O mulato ficou paralisado desde as primeiras palavras da senhora. Não por não saber o que fazer, mas simplesmente pela falta de interesse com tudo até então. O olhar dele repousara sobre uma pedra e ali ficara.
         - Eu poderia fazer sexo oral no senhor?

                                                                                           Cesar Domity
          
        
         -

sábado, 22 de fevereiro de 2014

Improviso para Allen Ginsberg

Caro Allen Ginsberg, eu escrevo poesia porque eu vivo
E eu vivo porque eu me desintegro
E a integridade é uma prisão
Eu vivo porque eu erro
E no erro há sempre uma dose de caos
E no caos está a semente da vida
Eu vivo porque o mundo é uma salada
E porque tem cozinheira na cozinha
Eu vivo porque Shakespear ainda ninguém derrotou
Eu vivo porque ainda há perigo no amor
Eu vivo porque o santo sexo da evolução ainda vive na minha cama
E porque ele é muito mais ideia e criação do que um simples ato físico
Eu vivo porque não sou católico
Sou cardíaco - mas sem doença no coração
Eu vivo porque viver é criar em dobro
E eu não consigo consumar o que é a vida
Sem a criação
Eu vivo porque existe a literatura
E Pessoa disse: A literatura é a melhor forma de ignorar a vida
E é preciso viver para se ter uma vida para ser ignorada
Eu vivo porque eu me entedio
E o tédio é o primeiro passo para que depois você viva
Eu vivo porque eu nunca saberei tudo
Eu vivo porque a vida ainda é somente uma opção
Eu vivo não porque isso é o melhor a se fazer
Mas porque, por hora, isso é tudo que se pode fazer
Eu vivo porque o amanhã é do caos
E o ontem , um lugar que não encontro mais
Eu vivo porque amanhã posso ter gripe
Eu vivo porque a palavra “posso” existe
Eu vivo porque, para eu viver, preciso fumar os meus cigarros
Eu vivo porque eu tenho a possibilidade de me matar
Eu vivo porque, se nada mais é doce, eu ainda posso ser
(Ou ainda lembro como é)
Eu vivo porque tem estrada
E se não houvesse, fazer estrada é ainda melhor
Eu vivo como bebe água quem tem sede
Eu vivo porque Nietzsche disse: A vida sem música seria um erro
E ainda tem música
Eu vivo porque eu estou sempre em desespero
Eu vivo porque Maria Madalena ensinou-me muito mais lições do que Jesus
Eu vivo porque não sou nem partidário nem anarquista
Eu vivo porque ainda não sou
Eu vivo porque eu poderia tomar vinagre se eu quisesse
Eu vivo porque nunca ninguém saberá o que eu sou
Porque nunca ninguém saberá como é ser eu
Eu vivo porque há loucura na razão
E razão para loucura - e na loucura.
Eu vivo porque metade do que eu sou é o que eu vivi
E a outra metade é o que eu quero viver
Eu vivo porque não há mais nada que eu possa fazer
E mesmo que eu decida morrer, isso ainda é viver


                                                                                                      Vinícius Faria

Tenho que Fazer Meu Dia

Acordo cedo.
Tenho que fazer meu dia.
Tenho que ser meu.
E mais do que isso:
Sei que tenho que fazer meu dia.
E sei que sei de tudo isso assim que acordo.

Por que não paras relógio?
Por que não posso eu puxar anti-horariamente o teu ponteiro?
E fingir que não é ainda a hora que eu sei que é.
Ora! Mas que grande bobagem. 
Se não fosse essa hora, seria outra.
E eu teria que fazer algo também nessa outra hora.
E mais do que isso é saber estar fazendo ou saber ter que fazer.
E isto é como uma fadiga, mas não de ter que pensar no meu dia,
E sim ter que pensar em fazer algo, e a consciência de ter.

Pobre do que fala em liberdade.
Mas mais pobre ainda a mente metafísica.
Dar um sentido para a vida é anular a liberdade como consequência.
E mesmo que o sentido seja a liberdade,
Não é algo muito livre ter que ser livre.

Pois então, decido agora, nesta manhã, que não há metafísica na vida.
Que a vida não tem sequer um sentido que seja.
Nego agora todo o sentido da vida.
E, por conseguinte, acabo de afirmar que o sentido da vida é não ter sentido para dá-la.
Raios!! Isso ainda é uma metafísica. 

                                                                        Vinicius Faria

Ciranda

Numa volta qualquer
Possivelmente reencontrarei você
Porque silenciosamente tudo pode repassar
Atrás das praças, das casas e das cidades.
Atrás de todas as intenções
E eu cuidarei disso com sigilo
Carinhosamente como quem afaga um gato
Cuidarei disso como um olhar o ontem
Até como que novamente canse de mim

Eu acordado debaixo das cobertas até tarde
Os domingos com você tem sempre a mesma promessa
E o seu vestido jogado na poltrona
Falando comigo
Então você sai pela porta
E eu saio de todas as portas
De todos os lugares onde eu estive
E tudo de novo torna-se sumido
Tudo de novo torna-se invisível
E o novo, tem de novo, uma nova porta.
Até que isso seja aquela coisa por onde você olha o ontem


                                                                                         Vinícius Faria

Poema Forçado

Parada és um amontoamento de pixeis
Presa entre nosso entendimento de tempo e de espaço
Forço o que escrevo e vejo-te nua com espasmos
E por entre o macio cio da tua carne, não posso...
Evitar de pensar formas estranhas para teu sexo
E quem ler agora terá que saber do esforço que faço
Para ver-te nua, para cantar na folha o que vejo.
Que eu imagine por entre os panos que te arranquei
E te abro com faca branca para por entre teu intestino
Fígado, pulmão e pâncreas possa falar, tudo púrpura,
Do que hipoteticamente chamas de coração
Onde tu guardas o que tu pensaste que tivesse
E que queria que eu visse
Viu, eu disse que não se força um poema


                                                                                      Vinícius Faria

Quadros

Pintas o quadro que te derem
Mas não o manches com a tinta que tens
Há tantos quadros para serem mais belos
Na distinção entre manchados e imaginados

Nem cria para teu regalo
Parede para os quadros que te derem
Nem coloca fora os que tens
.

Penduras-te de tua arte tu mesmo
As paredes mesmo as tuas são sempre aléias
Então pinte e só
E se puder nem em pintar pense



                                                                                       Vinícius Faria

Agora

Agora que eu estou morto
Não morro mais
Agora que acabou
Não acaba mais

Agora é perene
É calmo é preciso
Agora levemente flutua
O que tem que flutuar


                                                                                          Vinícius Faria