quarta-feira, 30 de abril de 2014

Amanda

Banho. Entro no quarto. Toalha em volta do corpo. “Consegui chegar a tempo”, disse-me. Minha pergunta veio-me sufocada “Quem é ele?”, pensei. Estava espaçosamente acomodado. Havia tirado os sapatos; meias de um verde escuro uniforme; em conforto; inclinado na cabeceira da cama de casal. Lia uma revista qualquer. Não gosto de revistas, pensei. Avistei no criado mudo, imediatamente ao lado dele, mais três. Elas estavam ali?, pensei. Quando percebi certo movimento diferenciado, o qual me fez inferir que ele trocaria de página, dei-me por conta que que ainda permanecia de toalha.      
Ele mexeu um pouco no cabelo, na roupa e perguntou “Estás bem, Amanda?”, “Sim, tudo ótimo”. Ele conhece-me de fato. E, em vista de sua despreocupação, devo vestir-me despreocupadamente tal qual.
Toalha. Guarda-Roupa... Parece-me maior. Aliás, não me recordo de ter aquele abajur amarelo. Suponho que deva dizê-lo que não tenho apreço por amarelo. “Estás olhando o abajur novamente?”, disse-me enquanto distraia-me dentro de mim. Destarte, estava agora impossibilitada de falar mais sobre este objeto tão... abjeto. Olhou-me novamente. Pronto. Nua. Permanecerei de costas. Podendo simular qualquer busca especial de roupa. Esta calça parece-me suficiente, a supor pela temperatura. “Vais sair?”, interrompeu-me. “Nós vamos?” perguntei de forma levemente irônica para que ele não apercebesse em mim qualquer desorientação. Levantou-se e organizou a revista exatamente em cima da segunda que estava justaposta com a primeira que, por sua vez, estava exatamente encaixada, digamos, na beirada do criado-mudo. “Vai acabar esfriando”, disse-me com um sorriso simpático. “Então que não percamos tempo”. A esta altura, já estava com roupa íntima e só me bastava colocar qualquer vestido caseiro. Com efeito, tinha total desconhecimento sobre o que estavamos a ir comer, mas supunha que meu palpite, em forma frasal, estava correto.
Comida pedida da rua. Comemos. Conversamos um pouco. Porém, nada muito relevante. Ele se dizia cansado e reclamou um pouco de dores nas costas e nos olhos. Eu, para não me fazer desregulada, inventei qualquer dor insignificante para parecer naturalizada à conversação. Em certo momento, ele olhou-me com seriedade e disse “Estás a tomar tuas medicações?”, “Sim. Absolutamente. Não posso deixar deste jeito.”, “Muito bem. Da última vez, bem lembras como foi.”, “Não... Não venha a se preocupar. Está tudo bem agora.”. Nesta instância, desassosseguei-me violentamente no meu interior. Talvez estivesse esquecendo-o por um remédio.
Em certo momento, ele disse que já estava ficando tarde. Comecei a pensar se deveria deixar a casa dele. Já tinha uma expressão por demais cansada e talvez quisesse repousar. No entanto, mal havia eu pensado nisso, ele se levantou, dirigiu-se até o quarto – pensei  então que ele me traria alguma surpresa ou que estivesse lembrando de entregar-me algo antes que eu partisse – e voltou vestindo um casaco. Pegou um dos molhos do chaveiro, abriu a porta sem muitas cerimônias. Nesta instância, imaginei que eu era a amante dele. Nenhum anel, pelo visto. Beijou-me nos lábios sutil e rapidamente. “Estou cansado. Desculpe pela falta de conversa”, “Não há problema nisso... Outra hora podemos fazer algo.... Quando estiveres mais disposto”, “Amanhã virei ter contigo mais cedo”, “Estarei a esperar-te”. “Até amanhã, Amanda”. Perguntei-me olhando-o: Há quanto tempo eu estaria fazendo isso?
Porta. Devo tê-la recém trancado. De quem será esta casa?
                                                              
                                                                                        Cesar Domity

O Apelo pelo Mundano

O som recôndito de tua expressão faminta
Perturba as alamedas de minha tenebrosidade
Entope os boeiros de minha calamidade
E assim desfecha uma tragédia infinita

Fome provinda de um excesso de ócio pavoroso
Torno-me a atração alimentícia do teu vazio
E neste teu limite imaginativo doentio
Tua veracidade é um riacho vertiginoso

As flautas de ninfas nuas
E as nuances de nossos espasmos
Manifestam-se em alta lua

Mas tu já és nula em traços
Eufórica em plena rua
Deseperada em sôfregos abraços.

                                                          Cesar Domity

Lactobacilos

Nos meus pensamentos abissais da noite
Quebro mãos hipotéticas na minha fronte
Entre o passado e um singular doce
Que a faxineira trouxe e deixou sobre a mesa
Deito no intervalo para acalmar minha tontura
Sou uma tridimensional olheira a andar pelo meu passado
Metade do meu sangue é agua
A outra metade é batida com bicabornato

Sou com força a minha cegueira
E meu desejo é uma coceira
Num membro que eu nunca tive
Não sei onde me encaixo direito
Nesta vida doente e amarela
Meu desejo é um suor
Com gosto de cravo e canela

Note que a vida é como andar numa vala
E que no fim tudo foi uma forca
Todos os meus orifícios são uma saída
Para eu não sentir na minha boca
A minha baba escorrendo com veneno
No fim é isso e mais nada
Todo o meu sexo tem cheiro de éter
E gosto de mostarda

O sonho é um pacote de biscoito
Vazio antes mesmo de ser aberto
Mas é a embalagem que me agrada
Se eu ainda estivesse num hospício
Dar-me-iam um vale alimentação na entrada
Mas agora soporífera não sinto mais nada
Toda a minha monotonia eu bebo como quem bebe água.


                                                          Vinícius Faria

Um dia

Saí logo desse dia
Porque como um abraço de amor
Ele liberta e sufoca
Mal abre o dia e o flerte começa
E no fim de não chegarmos em lugar nenhum
Estáticas suspensas no tempo
Como um inseto no âmbar
Inventamos mundos para viver
Saímos a pé na estrada deserta
Vendo flores nos pinhais
Ilusões coloridas para preencher espaços vazios
E tudo escorre por entre os dedos da mão da alma
E no desespero inventamos palavras
Casas, cidades, canções, cor
Colocamos a culpa na vida

Não tem culpa a vida
Não temos culpa
O dia é uma ferida de cachorro para nós lambermos


                                             Vinícius Faria