quinta-feira, 23 de maio de 2013

Desculpa do Tempo

Escute-me, Alice
Se a teus ouvidos chega
Nem me dizes
Ao que falam te digo
Tanto é verdade
Como é mentira
Se todo dia se nasce
E se morre
Talvez tudo que dizem
Eu fui
Ou sou
Ou talvez, serei.

Entenda, Clarice
Se ontem estive
Hoje talvez não esteja.
Quem fui,
O que sou
Ou o que serei
Não posso ter certeza
De qual eu
Que sou, serei.

                         Vinícius Faria



Hemácias

Pequena polenta
Pegaste meu chinelo e foste até a varanda para ver se era chuva
Era vento
Deverias ter escutado mais Vivaldi
Lido mais Nietzsche
Esquecido estes vil escritos populares
Ao invés disso, despedaçaste teu corpo pela via dupla
Não faço ideia do que vi quando ouvi isso de Geraldo
Que menino mais pacato
Que menino mais empacado
Destes que vive de passado
Eu não vivo de passado
Eu não vivo de dor
Esta dor é por falta de ferro, Fernanda
Juro.

Deveríamos ter ficado no Sábado
Mas não vivo no passado.
É falta de ferro...
Acordei faz pouco, Geraldo
Não sei por onde andei
Só sei que perdi Helena
E eu nem a amava.
                                             Cesar Domity

Três e Quinze

Quer me devorar o tempo
E pior, é noite
E quem dorme, não ouve o silêncio que dobra

Agora a cama morna
Afoga-se
E comigo não dorme.

Nem tento ler
Meus livros na estante
Pois meus pensamentos são tão distantes
Que de terem letras por dentro, duvido.
E é um grande desassossego
Meus livros por dentro estarem em branco.

Duas horas acordado
Colocaram o dia
Dentro da barriga do distante
E parece estranho ter havido
Algo parecido com dia antes
Desta noite em que o distante
Comeu o dia

                                           Vinícius Faria

A Arte em Tela Brilhante

Nas minhas reflexões sobre a literatura nos nossos dias, encontro espaçados atravancos que me impedem de tomar qualquer conclusão. Parece que viemos para um mundo onde tudo tornou-se redondo para não machucar nossos olhos e dedos. Salta-me aos olhos que estamos enclausurados na bolha da especificidade.
Sendo um pouco mais claro e em um contexto mais geral, parece que, por um lado, podemos nos espalhar pela ideia de qualquer época no passado e nos deliciarmos com esta idealização. Seja na Grécia Antiga, no Império Novo do Egito, na Baixa Idade Média, na estruturalização da sociedade moderna ou em qualquer outra época, parece que obtemos rapidamente as melodias poéticas que circundam estes dias e que algo se perde ao nos remetermos ao presente. Tão verdade é isso, que podemos ampliar o pensamento do denso presente para um contexto de futuro. Mesmo que não tenhamos qualquer dom físico de ver o que poderá acontecer em cem ou mil anos, podemos supor qualquer coisa em vista do universo da ficção. Coisas no patamar de pós-humanismo indo de híbridos de animais ao horizonte dos cyborgs, ou da convivência pacífica com seres de outros planetas, galáxias ou até, na improbabilidade física, com seres extradimensionais. O que nos leva ao ponto óbvio de todo este pensamento – imaginação.
Talvez estejamos sendo calibrados com doses altíssimas de anti-poesia no cotidiano ao ponto de estarmos a destruir nosso poder de imaginação. Quiçá eu nunca faça ideia absoluta do que Kundera deveras quis dizer quando apresentava o Kitsch assim como muitos tão pouco entendem o que o próprio contexto vem a ser, mas suponho que algo como os primórdios do socialismo bem como a evolução generalizada do mundo hodierno podem ser o quadro ideal de tal conceito. Vivemos em um mundo todo estético e oposto à arte, onde qualquer coisa pode ser considerada arte e o que leva à conclusão parafraseada mais primitiva e patética do existencialismo: Se tudo é arte, o que é arte?
         Neste mundo dominado pelo Kitsch, nota-se a relevância das formas, da expressão, do grito, não obstante, nada parece ter profundidade. Tudo que tocamos em termos de poética apresenta, no máximo, um auto-relevo oriundo da má organização das tintas na mão do nervoso pintor. A apoesia é dominante no tal presente.
Não consigo, ao certo, identificar todo o problema disso. Aqui, na América Latina mesmo, o que temos de melhor vem da poesia do século passado e, indubitavelmente, do realismo fantástico. Voltando a ideia do primeiro parágrafo, parece que temos a doença da especificidade. Tudo pode ser colocado de forma objetiva e reta de tal forma que todo o resto é prolixidade. E isso não só vem em termos de linguagem composta, mas também de palavras individuais. O que é um computador se não um computador? O que é uma televisão se não uma televisão? A grande variedade de palavras sinônimas desta última é composta de: TV, televisor e aparelho de televisão. Ao desmantelarmos a palavra, temos poesia, mas perdemos a palavra.
“Televisão.
Tele-visão.
Visão”.
Um amigo meu disse que “Hoje considera-se arte qualquer coisa que se faça com intuito de arte e a isso dá-se o nome de Arte Conceitual”. Ainda que os contemporâneos possam considerar poesia tamanha estupidez, imagine a inflexibilidade poética dos versos com a palavra “computador”.
“Não venhamos com este rancor.
Aproveitemos a noite de quarta.
Usufruemos do mundo do computador.
Venha logo que logo tudo acaba, tudo passa.”
Há sempre um ar de coisa cotidiana demais e sem círculos. Nada é preso. É, com efeito, um cotidiano vulgarizado. Sem respiração poética.
A nossa adaptação aos parâmetros sociais atuais da cultura ocidental vem nos tornado menos artísticos. E com tudo empurrando o mundo moderno, o mundo digital para os novos cérebros, que tenhamos uma certa tristeza presente para os desgraçados infelizes nulos de arte do futuro. Logo estaremos em uma sociedade completamente apoética e voltada aos prazeres imediatos como em Brave New World e nós seremos uns bárbaros abstratos a suspirar Shakespeare.
                                                    Cesar Domity

Sideral

Quiçá estrelas
           Sintetizam a presença

Sabe, menina
Na posse, uma solidão encrosta.
Um deserto se torce

Todos os unos
            Ainda abandonados estão
          
                                             Vinícius Faria

Vai anoitecer, Betina

Já começa a anoitecer.
O que é isso?
É pulga que me sobe?
Não. Não faça nada.
Deixe que ela me ame.
Se ela não se alimenta de mim, alimenta-se de você, querida.
Ou de fome morre.

Quem disse que as horas passariam cadentes?
Estão elas homogêneas e pestilentas.
Grudadas na parede e exaurindo pavor.
Guarda este relógio, mulher!
Guarda-te tu também.
Não aí. Na gaveta mais em cima.
Direita... Esta!

Não recolherás a roupa?
Está anoitecendo.
Eu sei que tu sabes.
Apenas queria avisar...
Talvez até venha chuva de noite.
Tem este vento de gente nova soprando.

Tens razão.
Será bom que chova.
Puta que pariu, Betina. Quando foi que ficamos tão chatos?
                                                             
                                                              Cesar Domity

Célula

Nada defenda,
Para a ti defender.
E para defender a ti,
Defenda-te e só
Não seja nada
Lembres de ti, tu!
Natural te seja
E assim não te trairás.

                  Vinícius Faria



Extrato físico

A única maneira de ser
Mais do que se é
É ser tudo
Que se é

                             Vinícius Faria

Carta Desesperada

Como é difícil, como é difícil, Beatriz, escrever uma carta.
Antes escrever os Lusíadas!
Como uma carta pode acontecer
Que qualquer mentira venha a ser verdade
Olha! O melhor é te descrever, simplesmente,
A paisagem,
Descrever sem nenhuma imagem, nenhuma...
Cada coisa é ela própria a sua maravilhosa imagem!
Agora mesmo parou de chover.
Não passa ninguém. Apenas
Um gato
Atravessa a rua
Como nos tempos quase imemoriais
Do cinema silencioso...
Sabes, Beatriz? Eu vou morrer!

                        Mário Quintana (Homenageado)