sexta-feira, 30 de novembro de 2012

Deserto

Vai passar a nuvem que não alcanço
Mas sonho alcançar
Iludo-me a sonhar
Sei que não posso sonhar

Estou sempre no deserto
Areia quente
Sou o meu próprio deserto
Nunca estive perto
Do nada,  estive além.

Vendo nuvens esqueço da areia
Ou esqueço de lembrar
E mesmo que pise em nuvens
O deserto em mim há de estár
E o que estou falando
Tudo é vazio
Iludo-me não ser
Mas sendo não sou

Onde vou caminhar?
Para aonde meus pés um dia vão sangrar?
Tenho que continuar iludido
Não consigo
Vou deitar acordado na areia
E nunca mais vou acordar

                                              Vinícius Faria

Elegia ao Primeiro Amigo

Seguramente não sou eu
Ou antes: não é o ser que eu sou, sem finalidade e sem história.
É antes uma vontade indizível de te falar docemente
De te lembrar tanta aventura vivida, tanto meandro de ternura
Neste momento de solidão e desmesurado perigo em que me encontro.
Talvez seja o menino que um dia escreveu um soneto para o dia de teus anos
E te confessava um terrível pudor de amar, e que chorava às escondidas
Porque via em muitos dúvidas sobre uma inteligência que ele estimava genial.
Seguramente não é a minha forma.
A forma que uma tarde, na montanha, entrevi, e que me fez tão tristemente temer minha própria poesia.
É apenas um prenúncio do mistério
Um suspiro da morte íntima, ainda não desencantada...
Vim para ser lembrado
Para ser tocado de emoção, para chorar
Vim para ouvir o mar contigo
Como no tempo em que o sonho da mulher nos alucinava, e nós
Encontrávamos força para sorrir à luz fantástica da manhã.
Nossos olhos enegreciam lentamente de dor
Nossos corpos duros e insensíveis
Caminhavam léguas - e éramos o mesmo afeto
Para aquele que, entre nós, ferido de beleza
Aquele de rosto de pedra
De mãos assassinas e corpo hermético de mártir
Nos criava e nos destruía à sombra convulsa do mar.
Pouco importa que tenha passado, e agora
Eu te possa ver subindo e descendo os frios vales
Ou nunca mais irei, eu
Que muita vez neles me perdi para afrontar o medo da treva...
Trazes ao teu braço a companheira dolorosa
A quem te deste como quem se dá ao abismo, e para quem cantas o teu desespero Como um grande pássaro sem ar.
Tão bem te conheço, meu irmão; no entanto
Quem és, amigo, tu que inventaste a angústia
E abrigaste em ti todo o patético?
Não sei o que tenho de te falar assim: sei
Que te amo de uma poderosa ternura que nada pede nem dá
Imediata e silenciosa; sei que poderias morrer
E eu nada diria de grave; decerto
Foi a primavera temporã que desceu sobre o meu quarto de mendigo
Com seu azul de outono, seu cheiro de rosas e de velhos livros...
Pensar-te agora na velha estrada me dá tanta saudade de mim mesmo
Me renova tanta coisa, me traz à lembrança tanto instante vivido:
Tudo isso que vais hoje revelar à tua amiga, e que nós descobrimos numa incomparável aventura
Que é como se me voltasse aos olhos a inocência com que um dia dormi nos braços de uma mulher que queria me matar.
Evidentemente (e eu tenho pudor de dizê-lo)
Quero um bem enorme a vocês dois, acho vocês formidáveis
Fosse tudo para dar em desastre no fim, o que não vejo possível
(Vá lá por conta da necessária gentileza...)
No entanto, delicadamente, me desprenderei da vossa companhia, deixar-me-ei ficar para trás, para trás...
Existo também; de algum lugar
Uma mulher me vê viver; de noite, às vezes
Escuto vozes ermas
Que me chamam para o silêncio.
Sofro
O horror dos espaços
O pânico do infinito
O tédio das beatitudes.
Sinto
Refazerem-se em mim mãos que decepei de meus braços
Que viveram sexos nauseabundos, seios em putrefação.
Ah, meu irmão, muito sofro! de algum lugar, na sombra
Uma mulher me vê viver... - perdi o meio da vida
E o equilíbrio da luz; sou como um pântano ao luar.

Falarei baixo
Para não perturbar tua amiga adormecida
Serei delicado. Sou muito delicado. Morro de delicadeza.
Tudo me merece um olhar. Trago
Nos dedos um constante afago para afagar; na boca
Um constante beijo para beijar; meus olhos
Acarinham sem ver; minha barba é delicada na pele das mulheres.
Mato com delicadeza. Faço chorar delicadamente
E me deleito. Inventei o carinho dos pés; minha palma
Áspera de menino de ilha pousa com delicadeza sobre um corpo de adúltera.
Na verdade, sou um homem de muitas mulheres, e com todas delicado e atento
Se me entediam, abandono-as delicadamente, desprendendo-me delas com uma doçura de água
Se as quero, sou delicadíssimo; tudo em mim
Desprende esse fluido que as envolve de maneira irremissível
Sou um meigo energúmeno. Até hoje só bati numa mulher
Mas com singular delicadeza. Não sou bom
Nem mau: sou delicado. Preciso ser delicado
Porque dentro de mim mora um ser feroz e fratricida
Como um lobo. Se não fosse delicado
Já não seria mais. Ninguém me injuria
Porque sou delicado; também não conheço o dom da injúria.
Meu comércio com os homens é leal e delicado; prezo ao absurdo
A liberdade alheia; não existe
Ser mais delicado que eu; sou um místico da delicadeza
Sou um mártir da delicadeza; sou
Um monstro de delicadeza.

Seguramente não sou eu:
É a tarde, talvez, assim parada
Me impedindo de pensar. Ah, meu amigo
Quisera poder dizer-te tudo; no entanto
Preciso desprender-me de toda lembrança; de algum lugar
Uma mulher me vê viver, que me chama; devo
Segui-Ia, porque tal é o meu destino. Seguirei
Todas as mulheres em meu caminho, de tal forma
Que ela seja, em sua rota, uma dispersão de pegadas
Para o alto, e não me reste de tudo, ao fim
Senão o sentimento desta missão e o consolo de saber
Que fui amante, e que entre a mulher e eu alguma coisa existe
Maior que o amor e a carne, um secreto acordo, uma promessa
De socorro, de compreensão e de fidelidade para a vida.

                                              Vinícius de Moraes

(Homenageado)

Retrato da Infância

Acordei o silêncio
E agora ele me ensurdesse
Onde estou eu que não estou aqui
Perdi-me em algum labirinto?
Fiquei preso dentro de mim?

E tudo vai passando sem que eu saiba prover
O que é essa ânsia se não quero nada?

Há uma mão puxando meu coração
Que agarra, puxa e estilhaça

E busco de volta meu coração
Num poço sem fundo
E neste segundo
Acho que me deixei lá na superficie
E não sei mais em que fundo do fundo de onde
É este que estou
Parece-me que tudo está longe
E perdeu sua utilidade fronte - Minha visão de fundo de poço
Tudo perdeu o sentido e a irmandade que tinha

Com seu nome tido
Até as minhas palavras parecem estranhas
Até a palavra não tem mais o sentido que teve no inicio

Nem ouso me olhar no espelho
O que vi no espelho desde sempre
Foi qualquer coisa não eu
E deixei de me ver
Com medo desse não eu que sou

Meus pensamentos me escapam
E hei de váriar os sentidos até o fim deste texto
E já estarei me estranhando novamente

Aqui perto de mim há uma foto de minha infância
Mas não estou ali
Quem é aquele garoto se não eu
E a imagem da imagem que tive?

Mas a imagem é imagem mesmo sem
Algo por baixo precisar ter
E como vão saber que ali estive?
Como vão saber que aqui estou?
Aonde estou?

Teve gente que passou anos comigo sem nunca ter estado.
E há quem me disse que já tinha estado comigo sem estar, já tinha estado sozinha, sem me conhecer

Até este texto tem mais a minha presença do que a foto da minha infãncia
Tem mais minha presença do que meu corpo agora

Um pensamento me vem
Existe pessoas que não são
Que são só uma foto de infância
Que sentem mais elas mesmas no espelho
Do que fora dele
Possuem medo do mundo

Preciso de uma árvore agora,
Teria mais sensação de estar perto dela do que das pessoas que tenho visto por aí
E que desconfio nunca estarem
Ou terem ficado lá na superficie
Com meu corpo e eu aqui
Neste poço de lugar nenhum e sem fundo

Aonde será que me encontro?
Ou onde encontro pessoas?
Ou seja lá o que seja... Eu, pessoas, poço, superficie...
O que penso do meu retrato de infância?

Eu vejo.
O que vejo no meu retrato de infancia?
Uma imagem.

Amanhã o meu hoje será só imagem
E nem na lembrança não serei
Como aquele do retrato agora não é

                                                      Vinícius Faria