quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

Gigante

No dia impávido que eu sai para fora pensando que lá tinha vida
Já não restava nada
Você tinha guardado todas as possibilidades dentro da gaveta da cômoda velha
E alguma coisa toxica ficou sobrando no ar
Alguma sombra ancestral que continuou a vagar

Nessas gavetas onde se guarda essas coisas eu não mecho
E qualquer passo em falso e o passado te esmaga
O passado é aquele gigante que anda derrubando arvores muito bem enraizadas
E é os pés que você foge, e das mãos que se esconde

Enquanto a noite o pensamento automático não dá descanso
Como vidro em pó como silêncio e arde
Onde toda a possibilidade se torna a mesma possibilidade
E mesmo assim não se aprende
Eu me guardo e vou embora
E você fica na gaveta, dançando com o gigante

Vinícius Faria
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segunda-feira, 17 de novembro de 2014

Eco

Momentaneamente fui para casa
Lambuzar-me de pegajoso tédio
Acordei de tarde sozinho na cama
Como quem acorda em um bote no meio do mar
Era véspera de dia nenhum e você não existia
Queimou-se como um fosforo molhado na gasolina
E eu fiquei com uma lembrança
Como lembrar para que serve a caixa de fósforos
Sem tê-los
E por dias, como num mapa, procurando por você no seu próprio corpo morto e frio.


                                                                                      Vinicius Faria

Tear

Com o tear largo
Que o nada tece os dias
Eu vou me sendo
Como qualquer musica
De um compositor qualquer
Que pensou toda, mas não a fez

Entre alguma coisa
E uma questão de lógica
Vou fazendo meu sentido
Como coisa certa por fora
E longe por dentro

Na indiferença aos caminhos
Eu escolho o caminho
De não escolher caminhos

Vou folha de jornal
A dançar sozinho
Nos ventos da rua

                                                                         Vinicius Faria

sábado, 9 de agosto de 2014

Tu

Há o teu joelho.
Há a tua barriga.
E ela é tão suave
E tão detalhada
Que quase sinto falta.
Há os teus dentes
Que não têm mais aparelho.
Há o teu cabelo
Que já está quase comprido.
Há a tua cintura
Que me faz lembrar
Que és por toda
Delineada.
Não é idolatria.
Talvez seja esta quase falta apenas.
Às vezes sou tu.
Minha própria pele não faz sentido em ser minha.
Não sei.
Não estou confortável.
Só quase tudo.
Quase tu.

                                                                                        Cesar Domity

domingo, 3 de agosto de 2014

Angélica

Acordo e escovo os dentes da minha boca de ontem com gosto de vinho no mesmo espelho onde à noite penso como amava Angélica que foi embora.

Escovo Angélica com os dentes de manhã pensando ainda no vinho que acabou ontem.

Vejo-me na Angélica que amava e me relaciono com o espelho, escovando os dentes.


Vinícius Faria         

terça-feira, 15 de julho de 2014

Antes do Cedo

Já é antes do cedo. ‘Desperta, Fernanda’. Escolheria o corpinho. ‘Corpinho? Não use o desuso, menina’. Não “que este não lhe cabe”, disse a mãe. Juvenil, juvenil. ‘Este sol que me deixa juvenil’.
         O tempo cobre de gracejos e gotículas as roseiras lá fora. Nada serve. Nem corpinho, nem calça, tampouco os minutos. ‘Para quem são estes minutos, rapariga?’. Não a ofenda, reflexo. Fernanda está sempre presa na eterna Segunda de Aureliano. Há sempre trabalho e roupas íntimas que não lhe servem.
Adulalções dispensáveis dirigidas com o combustível do moralismo. ‘Estás bonita, Fernanda’, ‘Emagreceste, Fernanda’. “Dê Schopenhauer para eles, menina. Dê Voltaire, dê um pessimismo que vele suas moralidades”. Não... ‘Obrigada, Obrigada’. “Obrigada estarás à hipocrisia, minha querida!”, prosseguia Augusto. Deveria tê-lo sugado a alma, pensa ela. Deveria ter livrado-se de deus, tal qual ele. Assim como viajado para Portugal no colegial e feito a dieta que dona Agda lhe indicou:
- Só proteína, minha filha.
- Mas o que é proteína, dona Agda?
- Ah, Fernanda! Proteína... Tu sabes.
Não sabia. Nunca soube e, a isto, atribuiu seu anti-sucesso. Anti? Não... Estava muito bem. Vivia bem com a mãe. ‘Para que sair pintada assim, menina?’. Assemelhava-se a um palhaço, dizia. ‘Deixe-me, mãe. Não pareço um’. Quiçá não parecesse, mas ao menos não metia medo nas crianças.
Que demonstrasse, no mínimo, calma por estas sobrancelhas. “Este elevador sempre quebra”, dizia o zelador do prédio. ‘E necessitava da minha presença dentro?’, pensou ela. Nem calça, nem elevador, nem sobrancelhas ‘que não fiz esta manhã’. Ele insistia que ela não se encabulasse, porém, não havia resistência perante à humilhação. Foram muitos anos anti-horários até o fim dos pilhas, Fernanda.
Agarrava-se forçosamente à influência dos zodíacos.
- Largue as racionalizações, amor.
Então, por que fostes embora, Augusto? Deixou Fernanda de camisola com um bilhete no espelho.
Desintegrando-se agora, realidade? Logo quando Fernanda consternava-se diante da existência. Diante do reflexo? Por que foste nascer com estas feições de uso? Há mãos por todo o crânio de Fernanda. ‘És airosa, és esbelta’, insistiam as mãos. ‘Por que me trais como um personagem de Shakespeare, reflexo?’. Não obstante aos apelos, dava sucessão aos aspectos da existência linearmente. Deixou-a quando grande em si mesma. ‘Ele foi para capital, filha?’. Não sabia. Ela mesma só desejava a contradição da existência. ‘Eu preciso de mais, Fernanda’. ‘E eu não sei, Augusto. Não sou bruxa. Vou deitar’. E deitou no sofá.
                                                                                Cesar Domity

domingo, 1 de junho de 2014

Pathétique

Meu nome é Apatia
Sou tocado em dó menor, meio diminuta
Sou um clássico compasso 6/8 em escala melódica
Por conseguinte, venho a transparecer sensações
Conquanto seja tão somente aquilo que indico-me do princípio
Irrefutavelmente apático.

E ao pegarem-me pela mão e levarem-me para o meio do salão
Assemelho-me à normalidade
Desconserto-me e já não sou nesta instância composto
Fico entediado com minha linearidade
E logo os mais atentos entendem meu logro
E imediatamente percebem em mim um Adagio Molto.

Fujo desta maneira funesta
Da apatia já sou agonia
Escondo-me nas montanhas sem ter percorrido qualquer caminho
E não há mais espelho onde eu possa me achar
Não há mais estrada a qual eu possa tomar
E a francesa com toda elegância grita-me:
Vous êtes pathétique!
E, ao menos em nota, quase volto a mim
E naquela sonata para piano em C menor revivo-me ou remato-me
Sonante ironicamente em Rondo Allegro.
E pronuncio para meus contemporâneos em meio à confusão do mundo:
É com Beethoven que o mundo deve desabar!

                                                               Cesar Domity

O Passado Revisitado

Momentaneamente um espectro diferente reteve-me de tal maneira que, apesar de evocar como ideia primeira a sensação de estranheza, de algo extrínseco, de um envólucro, de algo que não é essencialmente provindo de mim e que de tão extasiante poderia me fazer sentir asfixiado, pareceu-me uma emanação de qualquer coisa a qual eu até então desconhecera, a qual lentamente foi sendo criada interiormente e que só nesta instância última pode manifestar-se.
Estive um pouco preso nestes meses anteriores ao sofrimento repetido de um definido passado que constantemente revisitava de forma que pouco atentava-me aos demais passados contemporâneos deste. Talvez tenha-me retido em um antro - e isso não foi algo significativamente fácil de considerar como ocorrente pois por diversos anos consegui fazer separações eficientemente satisfatórios (ou convenço-me disso) dos meus prazeres e demais vida sexual a qual possuía somente dois polos passíveis de visitação – o dos meus terrores e dos meus deleites. Além destes, não havia sexualidade ativa em mim. Todo o resto parecia estar em putrefação. O polo de terror envolvia minhas frustrações como ser sincero, os enganos os quais sofri, todos aqueles e aquelas que já a tentaram possuir, os e as amantes possíveis, reais ou apenas hipotéticos dela, todo o pavor que me atingia certeiramente ao rever alguma antiga informação, ao perceber algum detalhe ainda inexplicado, ao notar alguma falha de voz que me havia passado despercebida e que só então assemelhava-se a ponta de um novelo que ao se desenrolar teria no cerne uma mentira facilmente reconhecível e, por detrás dela, uma verdade fatalmente mortal. E eu ouvi detalhes da própria boca dela. Todos eles puniam-me constantemente e, antes deles serem colocados de forma organizada, havia tamanha dor dilacerante que, embora depois tenha esta sensação se espalhado e convivido comigo regularmente, ela era mais suportável – menos agonizante, digamos – que aquela dor pontual e incessante. Em muitos momentos, apenas o polo de terror tinha poder de me excitar.  O do deleite, que normalmente é bem reconhecido até por pessoas comuns, tinha uma singularidade em mim: Ele era exclusivamente físico; livre de contexto. Baseava-se apenas em imagens, movimentos de curta duração (geralmente repetitivos ou metalmente eram projetados para repetirem-se mesmo que isso não estivesse de acordo com os dados mnêmicos), posições em algum lugar específico e detalhes em geral.
Hoje, diferentemente, acabei por sentir este espectro emanando e envolvendo-me com a origem no meu interior. Fui diretamente para estes passados específicos e resolvi olhar em volta. Acabei por notar diversas sutilezas as quais haviam praticamente esquecido. Toques, inclinações, suavidades, relevos... Quer dizer, eu realmente precisei de um recurso muito mais forte que minha memória, que é tão somente construída por ideias e sesações – como diria Joyce -, e revi descaradamente nossas cenas que estão eternamente gravadas até serem esquecidas em um sopro da existência (e com isso quero dizer: perdidas; voluntariamente ou não). Tive algo difereciado que apartava-se de todo meu capricho patético de outrora cuja à sua superfície evocava só vez ou outra um diminuto de semi-felicidade; neste algo de agora, senti satisfação.
A partir disso, não pude fazer algo a mais por mim. Eu estava quase como livre de mim. Parecia, com efeito, que olhava-me distante ao mesmo tempo que olhava para o que está distante; como se o tempo todo eu estivesse inclinado em uma janela e, distraidamente, abanasse para este outro eu que ia pelos caminhos curvos e longínquos das montanhas do horizonte. “Siga a trilha e boa aventura, meu amigo!”, gritei-lhe e ele, por sua vez, sorriu como só se sorri à felicidade e disse para si “mas é bem um bastardo mesmo...”.

Cesar Domity

quarta-feira, 30 de abril de 2014

Amanda

Banho. Entro no quarto. Toalha em volta do corpo. “Consegui chegar a tempo”, disse-me. Minha pergunta veio-me sufocada “Quem é ele?”, pensei. Estava espaçosamente acomodado. Havia tirado os sapatos; meias de um verde escuro uniforme; em conforto; inclinado na cabeceira da cama de casal. Lia uma revista qualquer. Não gosto de revistas, pensei. Avistei no criado mudo, imediatamente ao lado dele, mais três. Elas estavam ali?, pensei. Quando percebi certo movimento diferenciado, o qual me fez inferir que ele trocaria de página, dei-me por conta que que ainda permanecia de toalha.      
Ele mexeu um pouco no cabelo, na roupa e perguntou “Estás bem, Amanda?”, “Sim, tudo ótimo”. Ele conhece-me de fato. E, em vista de sua despreocupação, devo vestir-me despreocupadamente tal qual.
Toalha. Guarda-Roupa... Parece-me maior. Aliás, não me recordo de ter aquele abajur amarelo. Suponho que deva dizê-lo que não tenho apreço por amarelo. “Estás olhando o abajur novamente?”, disse-me enquanto distraia-me dentro de mim. Destarte, estava agora impossibilitada de falar mais sobre este objeto tão... abjeto. Olhou-me novamente. Pronto. Nua. Permanecerei de costas. Podendo simular qualquer busca especial de roupa. Esta calça parece-me suficiente, a supor pela temperatura. “Vais sair?”, interrompeu-me. “Nós vamos?” perguntei de forma levemente irônica para que ele não apercebesse em mim qualquer desorientação. Levantou-se e organizou a revista exatamente em cima da segunda que estava justaposta com a primeira que, por sua vez, estava exatamente encaixada, digamos, na beirada do criado-mudo. “Vai acabar esfriando”, disse-me com um sorriso simpático. “Então que não percamos tempo”. A esta altura, já estava com roupa íntima e só me bastava colocar qualquer vestido caseiro. Com efeito, tinha total desconhecimento sobre o que estavamos a ir comer, mas supunha que meu palpite, em forma frasal, estava correto.
Comida pedida da rua. Comemos. Conversamos um pouco. Porém, nada muito relevante. Ele se dizia cansado e reclamou um pouco de dores nas costas e nos olhos. Eu, para não me fazer desregulada, inventei qualquer dor insignificante para parecer naturalizada à conversação. Em certo momento, ele olhou-me com seriedade e disse “Estás a tomar tuas medicações?”, “Sim. Absolutamente. Não posso deixar deste jeito.”, “Muito bem. Da última vez, bem lembras como foi.”, “Não... Não venha a se preocupar. Está tudo bem agora.”. Nesta instância, desassosseguei-me violentamente no meu interior. Talvez estivesse esquecendo-o por um remédio.
Em certo momento, ele disse que já estava ficando tarde. Comecei a pensar se deveria deixar a casa dele. Já tinha uma expressão por demais cansada e talvez quisesse repousar. No entanto, mal havia eu pensado nisso, ele se levantou, dirigiu-se até o quarto – pensei  então que ele me traria alguma surpresa ou que estivesse lembrando de entregar-me algo antes que eu partisse – e voltou vestindo um casaco. Pegou um dos molhos do chaveiro, abriu a porta sem muitas cerimônias. Nesta instância, imaginei que eu era a amante dele. Nenhum anel, pelo visto. Beijou-me nos lábios sutil e rapidamente. “Estou cansado. Desculpe pela falta de conversa”, “Não há problema nisso... Outra hora podemos fazer algo.... Quando estiveres mais disposto”, “Amanhã virei ter contigo mais cedo”, “Estarei a esperar-te”. “Até amanhã, Amanda”. Perguntei-me olhando-o: Há quanto tempo eu estaria fazendo isso?
Porta. Devo tê-la recém trancado. De quem será esta casa?
                                                              
                                                                                        Cesar Domity

O Apelo pelo Mundano

O som recôndito de tua expressão faminta
Perturba as alamedas de minha tenebrosidade
Entope os boeiros de minha calamidade
E assim desfecha uma tragédia infinita

Fome provinda de um excesso de ócio pavoroso
Torno-me a atração alimentícia do teu vazio
E neste teu limite imaginativo doentio
Tua veracidade é um riacho vertiginoso

As flautas de ninfas nuas
E as nuances de nossos espasmos
Manifestam-se em alta lua

Mas tu já és nula em traços
Eufórica em plena rua
Deseperada em sôfregos abraços.

                                                          Cesar Domity

Lactobacilos

Nos meus pensamentos abissais da noite
Quebro mãos hipotéticas na minha fronte
Entre o passado e um singular doce
Que a faxineira trouxe e deixou sobre a mesa
Deito no intervalo para acalmar minha tontura
Sou uma tridimensional olheira a andar pelo meu passado
Metade do meu sangue é agua
A outra metade é batida com bicabornato

Sou com força a minha cegueira
E meu desejo é uma coceira
Num membro que eu nunca tive
Não sei onde me encaixo direito
Nesta vida doente e amarela
Meu desejo é um suor
Com gosto de cravo e canela

Note que a vida é como andar numa vala
E que no fim tudo foi uma forca
Todos os meus orifícios são uma saída
Para eu não sentir na minha boca
A minha baba escorrendo com veneno
No fim é isso e mais nada
Todo o meu sexo tem cheiro de éter
E gosto de mostarda

O sonho é um pacote de biscoito
Vazio antes mesmo de ser aberto
Mas é a embalagem que me agrada
Se eu ainda estivesse num hospício
Dar-me-iam um vale alimentação na entrada
Mas agora soporífera não sinto mais nada
Toda a minha monotonia eu bebo como quem bebe água.


                                                          Vinícius Faria

Um dia

Saí logo desse dia
Porque como um abraço de amor
Ele liberta e sufoca
Mal abre o dia e o flerte começa
E no fim de não chegarmos em lugar nenhum
Estáticas suspensas no tempo
Como um inseto no âmbar
Inventamos mundos para viver
Saímos a pé na estrada deserta
Vendo flores nos pinhais
Ilusões coloridas para preencher espaços vazios
E tudo escorre por entre os dedos da mão da alma
E no desespero inventamos palavras
Casas, cidades, canções, cor
Colocamos a culpa na vida

Não tem culpa a vida
Não temos culpa
O dia é uma ferida de cachorro para nós lambermos


                                             Vinícius Faria