terça-feira, 23 de outubro de 2012

Quebra de Lembrança

Vida fria que escorre como líquido num recepiente infinito
Espalha todo meu sangue para todo lugar que eu ande na fiúza desta noite de gelo e molda meu tempo com gel de cabelo.

Dão-me por consolo o alento, a luz cega do firmamento
E teu perfume, pequenina, dobra-me a cada esquina

E da desrealização da vida repentina
Que escorre da lembrança qualquer sentido como parafina derretida

Que esta vela ilumine
A queima da lembrança
Que apenas tem o movimento como herança
E que em chão para trás nada haja
Por essa vida que se espalha em brasa

Que venham todas as chuvas
E leve minha humanidade suja
Que queime meu vinho quente
E a sacarose que o metabolismo experimente
Que a essência mantenha o encanto
Ao brotar insólita em qualquer recanto
E que eu me junte à imagem de onde estiver como margem de qualquer margem que vier.

                                                      Vinícius Faria

Poema Ruivo

Há um novo mundo na parada de ônibus.
Mas será apenas um mundo.
E torna-se-á um mundo como qualquer.
Um mundo bobo, apático e renovado.
Que recusa católicos como efeito placebo
Que nasce de um pensamento, se ramifica e se justifica
Que voltará a se entendiar em meio a proliferação desmedida
E que se devorará por inteiro novamente.
Por fim, voltarei dele

Ficarei no presente
Simplesmente.
Eu fico porque a nenhum lugar poderia não pertencer.
Eu sou de todo o universo.
Natural na natureza.
Eu sou madeira em meio a titânios
Em um mundo onde todos deveriam ferver, eu queimo.

Eu
Desaparecido em um infinito com eternos infinitos
Estagnado em um instante elétrico
Verme de minha doença social
Do amor saturado, rarefeito
Consumido em tédio pleno
Arrastado por este sonho complexo de viver
Idolatrado pelas baratas do meu apartamento
Eu
Assim
Pertenço a esta ruiva de minha imaginação

Uma ruiva que vive nas paradas de ônibus
E que torna-se exponencialmente transparente quando me aproximo.

Uma ruiva que vive nas paredes.
Que escala o meu cotidiano e assombra meu futuro com sua ausência
Que não é um ser humano.
É a minha fantasia do ideal.
É o meu ideal de fantasia.

Pelo caminhar reflexivo noturno
Decidi criar meu próprio paradoxo
Fiz as malas e fui embora.
Nunca mais me vi.

                                         Cesar Domity

Psicologia de um Vencido

Eu, filho do carbono e do amoníaco,
Monstro de escuridão e rutilância,
Sofro, desde a epigênese da infância,
A influência má dos signos do zodíaco.


Profundissimamente hipocondríaco,
Este ambiente me causa repugnância...
Sobe-me à boca uma ânsia análoga à ânsia 

Que se escapa da boca de um cardíaco.

Já o verme - este operário das ruínas -
Que o sangue podre das carnificinas

Come, e à vida em geral declara guerra,

Anda a espreitar meus olhos para roê-los,
E há de deixar-me apenas os cabelos,
Na frialdade inorgânica da terra!


                                       Augusto dos Anjos  (Homenageado)                                

Ab Initio

Eu assopro a carne.
O vento assopra em mim.
A carne, no meio de tudo, é espectador sendo esfriado.
O vento assopra na carne.
Eu assopro no vento.
Ele se estufa.
Corto-o em dois em minha paralisia.
Em euforia se refaz.
Inerte ele fica.
Eu aturo a carne.
Ele quer ser sangue, quer ser carne.
Eu rio em estrondos, desafio Zéfiro.
Eu assoprado.
O vento escarnecido.
Fecho a porta.
Quebro a corrente.
O vento se cala.
Eu sufoco em imagem.
O vento, acorrentado, é livre.

                                                Cesar Domity

Onde o desencanto mora

Em cada esquina desta cidade ornamental
Vagam os segundos dentro do tempo do pensamento
Os carros todos de terno e os relógios na esquina
Dobram a gaiola que circunda os humanos

Todos os trilhos que não existem
Levam facilmente todos na hora vazia
Pelos labirintos secos e cinzentos
Sempre em busca da mesma miragem
Em cantos podres e temperados de urina
Juntam-se humanos de estimação
Abandonados
Protegendo-se do universo
Tal qual sem dono

Nos prédios gelados da cidade solar
Sobem e descem pavões
Felizes por sua plumagem
Num vai-e-vem de carnes frias
E de passos vazios puxados pelo hipinotismo
Chego eu a ouvir o som oco de crânios vazios
E risos programados
A cidade de pernas abertas para o aconchego do espírito

                                                              Vinícius Faria

Chuva Verde, Noite Azul

A chuva verde cai lá fora na noite azul
Traz a vida do tempo para a vidraça do meu quarto mudo

Eu e a chuva estamos vivos
E não há mais presença no mundo

A noite é um mar que engole tudo
Neste momento, está todo mundo fora do mundo
Só a chuva está aqui dentro
A chuva que faz barulho
Que existe
Que penso
Quem pensa em mim agora?

As chuvas não pensam
Só caem lá fora.

                                       Vinícius Faria

A Face da Vida

Por que tão-somente a morte adere a uma feição?
“Da vida, a morte parte é” dizem eles.
Dizem que em nosso outono, a morte chega.
Mas a vida nunca chega.
Tampouco faz menção.
Chega esta morte de onde e para onde há de ir?
Por onde tem andado esta senhora que “vive” a aquiescer os vivos à não-vida?
Se a morte é parte inseparável da vida - e ela tem feição enquanto a vida não - estamos em equivocado pensamento.
A feição da vida é propriamente a feição da morte em andamento.
Conclui-se que a vida chega.
Uma pergunta tem resposta.
“Chega aonde?”
Chega ao fim.

                                                       Cesar Domit

Câncer

Queria ser tragado
Por tua respiração mais profunda
Como disperção da fumaça saída de teus cigarros
Para eu encontrar na tua boca espaço

E tê-la absurda
E na tua garganta sentir meus pedaços
Ter teu corpo por dentro lá do centro
No poço de teu esôfago
Em um vai-e-vem
De uma respiração acelerada

Quente
Sentida também
Por fora dessa
Onde não hei de mais ser
E quando como um grito tu me expelir
Do fundo da tua garganta
Lugar de antes

Que eu possa então dizer
Que não te deixei marcas
Deixei um câncer em teu ser

                                                      Vinícius Faria

As Nuvens são Pedras

As nuvens são pedras
E hoje caem do céu
Fazem buraco na alma de um gigante de seda


Hoje eu sou o corcunda
E a minha alma é a Galáxia
A noite, uma bigorna
Sou uma criança que não dorme

Abandonados na chuva tentam lavar as ilusões
Cantam mudos lá fora um lúgubre desconsolo que estiola

A intimidade da garota branca pelos labirintos da casa
Quase sem vestes
Em um vestido com asas

Derramaram o pote da minha alma
Lá no banheiro do segundo andar
Já vazou minha alma pelo corredor
Não demora vai descer a escada

                                                  Vinícius Faria

Inconsistência

Não há nada
Neste incabível
Não há ida
Para onde vamos
Embriagados em coisa nenhuma
O mundo se cria
Da memoria que aqui não há
Faz-se repetida
De uma coisa que nunca ouve
Faz-se repetida
Nada por aqui fica
Nem vai
Aquilo que aqui não existe
Aqui se faz mais
E retrata um nada ambíguo que um dia cai

                                                
                         Vinícius Faria e Cesar Domity