quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

O Âmago (III)

III

Acordei com a aurora que iluminava a geada sobre as plantas rasteiras e dirigi-me para fora de casa para assistir o nascer do sol.
Tudo estava como uma belíssima primeira manhã de primavera que ainda traz o frio do inverno. Mamãe a cozer e a coser. Passava do fogão à máquina de costura vez que outra.
Pensei em Bismuta. Da última vez que Seu Cândido me viu ali, castigou-a severamente e deixou-a, por longo tempo, do lado de fora afirmando “queres conversar com o analfabeto do teu primo Túlio? Queres conversar com as pessoas? Então saias e fique! Porventura te trancas em casa para aporrinhar-me? Tu tens o dia inteiro para sair e ver as pessoas, mas preferes de noite, não? Pois bem, fiques aí!”. Neste dia ela ficou na porta chamando suavemente “Pai... Pai... Pai”. Havia ele dado outros castigos horrendos. Bismuta, dolorida e com marcas roxas pelo corpo, mal se mostrava pela janela. Certa vez, o olho direito tornou-se túmido. Não sei se a verei hoje...
Quando me aproximei da parede externa, do lado da casa, onde havia meu quarto, avistei a boneca da Bismuta chamada de Juli, exatamente abaixo do meu quarto. Corri nesta direção e junto meus devaneios arquitetavam teorias. O pai dela não se zangou e ela veio procurar-me agora pela manhã, a ser assim, por que não bateu à porta?
Fugir de casa? Não... Bismuta nunca faria isso. Em todo tempo reteve moralidade.
Segurando Juli, percebi algumas pedras na chã a frente da madeira da casa. Sim! Ela quis me chamar sem minha família vê-la! Jogou pedras; muitas delas... Então, apressei-me para a casa dela.
Alguém vinha rápido em raivoso galope em minha direção. Seu Cândido! Escondi-me imediatamente. Logo que passou, continuei minha sina enquanto devaneava. “Garanto que Bismuta queria ver o nascer do sol comigo”. Estes são os momentos que ela parece falar com alguma potestade da natureza. “Ela é perfeita, não achas?” Tão-somente concordava. “A Terra é linda, inimaginavelmente linda; os homens a estragam, a enfeiam”, continuava ela. Quando nós víamos o sol ela prontamente se espreguiçava e suspirava “Mais um dia, mais uma vida”.
A partir do momento em que a conheci, desejei que o pai dela quisesse noivar-lha comigo. Além de tudo, eu a amava. Hão de rir com esta tolice, não obstante, era um sentimento inocente, eterno, mental, meigo, afável, transcendental, único e docíssimo. Bismuta discordava “amor puro é aquele que temos por tudo ao mesmo tempo e amor por um é efêmero”. Eu nem sabia do que ela falava ao certo. Papai certa vez contou-me “ela tem uma alma velha, meu filho”. Aos olhos, não parecia.
Sentada e encolhida na frente da casa. Acolá estava.
- Prima!
Não obtive resposta.
A porta da casa escancarada e Bismuta ao lado, abraçando os joelhos com força. Não estava agasalhada, e poderia ficar doente – menina boba -. Fazia muito frio.
- Eu trouxe a Juli.
Sentei-me ao lado e observei que seus olhos estavam pálidos e secos. Sua expressão vazia e o corpo imóvel. Toquei-a para ver se estava febril, mas a senti mais gélida que o orvalho noturno.
Minha alma, igualmente, congelou.

                                     Cesar Domity

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